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sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

DONA PARÓQUIA


ELA nasceu aos doze dias do mês de dezembro do ano da graça de hum mil novecentos e quarenta e três (12/12/1943). Sua vida penosa não foi empecilho para atravessar tormentas e tempestades em alto mar, apesar de viver no sertão agreste do interior do Ceará.

Hoje, ao arrumar os cabelos brancos diante do altar, prepara-se para comemorar o seu octogésimo aniversário (80 anos). Não foi nada fácil chegar até aqui. Tal qual um avião em turbulência, houve momentos de bonança. O barco não naufragou, o aeroplano plaina tranquilo diante da paciência de Jó e ELA continua firme seguindo os preceitos de sua tataravó.

Acostumou-se a rezar o Rosário desde a mais tenra idade e os três terços diários nunca foram dedilhados pela metade. Nesses oitenta anos ELA participou ativamente de todos os eventos da comunidade e das comemorações em honra à Nossa Senhora do Rosário (27 de setembro a 07 de outubro), seja nos braços de sua mãe, seja como Apóstola do Santíssimo Sacrário.

E assim, ELA desfila altiva rumo à Matriz com as mesmas pegadas de outrora, permanece suave como a aurora e feliz como as andorinhas que sobrevoam o sino secular e encanta a todos com o badalar de um feliz destino.

ELA ainda consegue escutar o arrastar das vassouras das irmãs Craveiro, sente o aroma do café do Senhor Luís Simão e de Dona Aurora debaixo dos tamarineiros, recorda cada prenda do leilão e aspira o cheiro divino da cola da sapataria do mestre Zé Sabino.

As primeiras letras do mestre Cordeiro ressoam como luz e se misturam às ladainhas cantadas e às fitas encarnadas sobre os ombros da Irmandade do Coração de Jesus.

Os filhos, netos e bisnetos estão adultos e professam os mesmos ensinamentos, com algumas variações, mas sempre atentos aos dogmas cristãos.

Ao olhar para trás, revive gloriosa a sua ascendência desde o século XVIII (pelos idos de 1712). Era uma capelinha em efervescência, Riacho dos Guimarães, tentando fincar raízes numa terra remota e tal como a Virgem da Assunção ausculta atenta o silêncio possante das mães bem no íntimo do coração.

ELA sintetiza a todos nós, atende pelos nomes de Marias, Rosários, Anas, Joanas, Josefas, Joaquinas, mulheres empoderadas e sem voz. Para esta matrona não importa a variação nominal e ELA nos socorre por inteiro, imparcial.

Sob a batuta do Padre Jocélio ainda brota na memória afetiva a assinatura de sua Certidão de Nascimento pelo bispo Dom José Tupinambá da Frota.

A Cúria Diocesana conclama solene: - Paróquia Nossa Senhora do Rosário de Groaíras?

ELA responde lá do alto do coreto, empertigada e contente, octogenária, cabelos nevados ao vento:

- PRESENTE!!!...

 

Texto: ERINEU MELO

P.S: Texto que foi lido na igreja de Nossa Senhora do Rosário de Groaíras-CE, no dia 12 de dezembro de 2023, por ocasião da missa festiva do aniversário dos 80 anos da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

 




VANDINHA

 “[...] a própria vida me ensinou que um dos segredos mais úteis para escrever é aprender a ler os hieróglifos da realidade sem bater na porta para perguntar nada.”

(Gabriel Garcia Márquez, Viver para Contar, 2014, p. 396)

Chegou à noite, faceira, rabinho sinalizando intenção de aproximação, possibilidade de contato, troca de afeto. Pretinha, estatura média, rosto animalmente angelical, celebramos nosso pacto com alimento, água e carinho recíprocos, eis os termos do “negócio” bilateral entre homem e uma cadelinha de rua.

Sumia por uns dias, sendo os reencontros eventos de intensa demonstração de afeto, tudo por um pouco de atenção e um punhado de ração.

Fortalecendo-se laços, dei-lhe nome, Vandinha, familiarizando-a, reforçando o compromisso de sempre atendê-la quando requerido, nos limites do possível nos distanciamentos da triste realidade de um animal de rua, andarilho nato, elemento simbolizador de liberdade nos extremos dos júbilos e intempéries do tempo, do esbaldar do lixo na tentativa de saciar suas fomes.

Não tive como adotá-la. O parco espaço de minha residência já tem latidos, e agora miados, que me enchem de amor e pelo por todos os cômodos, contraponto entre alegria e, inclusive, falta de privacidade diante de tantos olhos vigilantes. São três cadelas e duas gatas.

Dentre idas e vindas, Vandinha passou a ser assistida por um companheiro, um vira-lata “caramelo” possessivo, não aceitando aproximação da pretendida, sinalizando com rosnado e exposição dos dentes, mensagem clara, como se dizendo: “se vier, mordo!”. Apesar do risco expresso, cumpria o pacto com a cadelinha de rua dando-lhe ração, água e carinho, sempre à espreita, vigilante, tentando minimizar os riscos de ataque do cão caramelo.

A visita que se dava em curtos intervalos, sempre à noite, foi se distanciando mais e mais, acreditando, em dado momento, que a amiguinha teria encontrado ou reencontrado um lar.

Passado longo tempo, o reencontro com a amiguinha foi desalentador. Veio só. Seu corpo era documento das mazelas do abandono. Magra, esquálida, com claros sinais de alguma doença fatal a consumi-la. Abalado com o estado da amiguinha, reforcei nosso pacto acrescentando aplicação de medicamentos para infestações de carrapatos e outros.

Procurei o poder público. Após longos seis meses, foi feito o teste rápido para detecção da leshemaniose, que deu negativo. Aquele, como que uma versão contemporânea de Pilatos, lavou às mãos.

Vandinha, cheia de dores e sangrando pelo órgão genital, com a ajuda de amigos, a levamos ao veterinário, sendo o diagnóstico imediato câncer, porém, possivelmente tratável. Exames foram requeridos e o material foi imediatamente coletado no corpo do animal, sem qualquer reclamo, apesar das sinalizações de dores. A apreensão se potencializou pela incerteza entre a possiblidade de tratamento ou eutanásia da amiguinha, a depender dos resultados laboratoriais.

Retornando da consulta, a alimentamos e tristemente a devolvemos à liberdade na esperança de ainda encontrá-la em breve. Ela, cheia de limitações, com dores e sem conseguir defecar, consequências da mazela que a consome, desfilou no logradouro no tilintar dos seus ossos, no seu caminhar paralelo com a morte, até que se cruzem e a criatura retorne ao seio do Criador.

Groaíras-CE, 25 de maio de 2023.

Augusto Martins Melo