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quinta-feira, 25 de maio de 2023

 




VANDINHA

 “[...] a própria vida me ensinou que um dos segredos mais úteis para escrever é aprender a ler os hieróglifos da realidade sem bater na porta para perguntar nada.”

(Gabriel Garcia Márquez, Viver para Contar, 2014, p. 396)

Chegou à noite, faceira, rabinho sinalizando intenção de aproximação, possibilidade de contato, troca de afeto. Pretinha, estatura média, rosto animalmente angelical, celebramos nosso pacto com alimento, água e carinho recíprocos, eis os termos do “negócio” bilateral entre homem e uma cadelinha de rua.

Sumia por uns dias, sendo os reencontros eventos de intensa demonstração de afeto, tudo por um pouco de atenção e um punhado de ração.

Fortalecendo-se laços, dei-lhe nome, Vandinha, familiarizando-a, reforçando o compromisso de sempre atendê-la quando requerido, nos limites do possível nos distanciamentos da triste realidade de um animal de rua, andarilho nato, elemento simbolizador de liberdade nos extremos dos júbilos e intempéries do tempo, do esbaldar do lixo na tentativa de saciar suas fomes.

Não tive como adotá-la. O parco espaço de minha residência já tem latidos, e agora miados, que me enchem de amor e pelo por todos os cômodos, contraponto entre alegria e, inclusive, falta de privacidade diante de tantos olhos vigilantes. São três cadelas e duas gatas.

Dentre idas e vindas, Vandinha passou a ser assistida por um companheiro, um vira-lata “caramelo” possessivo, não aceitando aproximação da pretendida, sinalizando com rosnado e exposição dos dentes, mensagem clara, como se dizendo: “se vier, mordo!”. Apesar do risco expresso, cumpria o pacto com a cadelinha de rua dando-lhe ração, água e carinho, sempre à espreita, vigilante, tentando minimizar os riscos de ataque do cão caramelo.

A visita que se dava em curtos intervalos, sempre à noite, foi se distanciando mais e mais, acreditando, em dado momento, que a amiguinha teria encontrado ou reencontrado um lar.

Passado longo tempo, o reencontro com a amiguinha foi desalentador. Veio só. Seu corpo era documento das mazelas do abandono. Magra, esquálida, com claros sinais de alguma doença fatal a consumi-la. Abalado com o estado da amiguinha, reforcei nosso pacto acrescentando aplicação de medicamentos para infestações de carrapatos e outros.

Procurei o poder público. Após longos seis meses, foi feito o teste rápido para detecção da leshemaniose, que deu negativo. Aquele, como que uma versão contemporânea de Pilatos, lavou às mãos.

Vandinha, cheia de dores e sangrando pelo órgão genital, com a ajuda de amigos, a levamos ao veterinário, sendo o diagnóstico imediato câncer, porém, possivelmente tratável. Exames foram requeridos e o material foi imediatamente coletado no corpo do animal, sem qualquer reclamo, apesar das sinalizações de dores. A apreensão se potencializou pela incerteza entre a possiblidade de tratamento ou eutanásia da amiguinha, a depender dos resultados laboratoriais.

Retornando da consulta, a alimentamos e tristemente a devolvemos à liberdade na esperança de ainda encontrá-la em breve. Ela, cheia de limitações, com dores e sem conseguir defecar, consequências da mazela que a consome, desfilou no logradouro no tilintar dos seus ossos, no seu caminhar paralelo com a morte, até que se cruzem e a criatura retorne ao seio do Criador.

Groaíras-CE, 25 de maio de 2023.

Augusto Martins Melo

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