VANDINHA
(Gabriel Garcia Márquez, Viver para
Contar, 2014, p. 396)
Chegou
à noite, faceira, rabinho sinalizando intenção de aproximação, possibilidade de
contato, troca de afeto. Pretinha, estatura média, rosto animalmente angelical,
celebramos nosso pacto com alimento, água e carinho recíprocos, eis os termos
do “negócio” bilateral entre homem e uma cadelinha de rua.
Sumia
por uns dias, sendo os reencontros eventos de intensa demonstração de afeto, tudo
por um pouco de atenção e um punhado de ração.
Fortalecendo-se
laços, dei-lhe nome, Vandinha, familiarizando-a, reforçando o compromisso de
sempre atendê-la quando requerido, nos limites do possível nos distanciamentos
da triste realidade de um animal de rua, andarilho nato, elemento simbolizador
de liberdade nos extremos dos júbilos e intempéries do tempo, do esbaldar do
lixo na tentativa de saciar suas fomes.
Não
tive como adotá-la. O parco espaço de minha residência já tem latidos, e agora
miados, que me enchem de amor e pelo por todos os cômodos, contraponto entre
alegria e, inclusive, falta de privacidade diante de tantos olhos vigilantes.
São três cadelas e duas gatas.
Dentre
idas e vindas, Vandinha passou a ser assistida por um companheiro, um vira-lata
“caramelo” possessivo, não aceitando aproximação da pretendida, sinalizando com
rosnado e exposição dos dentes, mensagem clara, como se dizendo: “se vier,
mordo!”. Apesar do risco expresso, cumpria o pacto com a cadelinha de rua
dando-lhe ração, água e carinho, sempre à espreita, vigilante, tentando minimizar
os riscos de ataque do cão caramelo.
A
visita que se dava em curtos intervalos, sempre à noite, foi se distanciando
mais e mais, acreditando, em dado momento, que a amiguinha teria encontrado ou
reencontrado um lar.
Passado
longo tempo, o reencontro com a amiguinha foi desalentador. Veio só. Seu corpo
era documento das mazelas do abandono. Magra, esquálida, com claros sinais de
alguma doença fatal a consumi-la. Abalado com o estado da amiguinha, reforcei
nosso pacto acrescentando aplicação de medicamentos para infestações de
carrapatos e outros.
Procurei
o poder público. Após longos seis meses, foi feito o teste rápido para detecção
da leshemaniose, que deu negativo. Aquele, como que uma versão contemporânea de
Pilatos, lavou às mãos.
Vandinha,
cheia de dores e sangrando pelo órgão genital, com a ajuda de amigos, a levamos
ao veterinário, sendo o diagnóstico imediato câncer, porém, possivelmente
tratável. Exames foram requeridos e o material foi imediatamente coletado no
corpo do animal, sem qualquer reclamo, apesar das sinalizações de dores. A
apreensão se potencializou pela incerteza entre a possiblidade de tratamento ou
eutanásia da amiguinha, a depender dos resultados laboratoriais.
Retornando
da consulta, a alimentamos e tristemente a devolvemos à liberdade na esperança
de ainda encontrá-la em breve. Ela, cheia de limitações, com dores e sem
conseguir defecar, consequências da mazela que a consome, desfilou no logradouro
no tilintar dos seus ossos, no seu caminhar paralelo com a morte, até que se
cruzem e a criatura retorne ao seio do Criador.
Groaíras-CE,
25 de maio de 2023.
Augusto
Martins Melo
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